A palavra “crise” vem do grego κρίσις (krísis), significando, genericamente, um “momento decisivo de mudança que implica escolher um caminho específico de rutura com o estado de coisas vigente”. A sua raiz está no verbo κρίννω (krínnō), que significa “separar”, “escolher”, tal como o termo “crítica”, do grego “kritiké”, que significa “analisar”.
Os tempos atuais são de crise. Por isso exigem a crítica. Comparações com outras épocas históricas são incapazes de captar a extensão dos desafios presentes. É certo que as revoluções industriais prévias promoveram mudanças consideráveis no modo de vida das populações e na organização política e económica das sociedades. Porém, tal decorreu num tempo mais ou menos longo. Os avanços tecnológicos recentes, sobretudo os do mundo digital e os decorrentes da computação, bem como a sua tremenda potência transformadora das formas de vida, aceleram o progresso de um modo inaudito e tendencialmente exponencial, dificultando a capacidade individual de adaptação e tornando o futuro mais imprevisível do que nunca.
É seguro afirmar que as propostas políticas de outrora foram ultrapassadas por estes desenvolvimentos. Nem o liberalismo nem o socialismo, bem como as demais ideologias formuladas há mais de um século, nos seus sentidos mais tradicionais, podem responder de modo adequado às mudanças em curso, dado os seus pré-conceitos, raramente adaptados ao presente, terem sido estabelecidos para um mundo finado.
Uma disjunção na crise política do momento parece salientar-se: aquela que conduz a um globalismo mercantilista, apoiada pelo Estado como instituição de poder capturada pelos interesses de megacorporações, separada dos interesses fundamentais dos cidadãos enquanto tal. Cada vez mais a soberania é transferida para organizações supranacionais e o poder económico concentra-se em menos instituições, sejam individuais ou coletivas. A consequência é a perda de autonomia e independência dos cidadãos, progressivamente reduzidos à condição de sujeitos de uma governação totalitária, tendencialmente anónima e invisível. Seguindo este rumo, a própria noção de indivíduo, tal como inventada pelo liberalismo, tem vindo a transformar-se.
Mas não será o coletivismo socialista a impor-se. Será sim um neofeudalismo onde todos estarão submetidos aos ditames dos senhores neofeudais, as megacorporações, e ao seu braço armado, o Estado – ou o Estado dos Estados, ou seja, as organizações supranacionais.
Esta situação terá conveniências para a maioria, cuidada paternalisticamente por entidades abstratas superpotentes. O problema está na dificuldade crescente – para não dizer a impossibilidade futura – de resistir no espaço público, caso assim se entenda, aos abusos de poder, à submissão absoluta, ao controlo totalitário de magnatas e burocratas.
Uma alternativa – porque existe sempre – é colocar os avanços tecnológicos ao serviço dos interesses de cidadania, os quais têm de passar necessariamente pela promoção da autonomia e independência individual, pela libertação da necessidade e do trabalho – pois o contrário implica o fim da própria condição de cidadão. Como fazê-lo constitui o exercício nobre do pensamento e da ação política atual.
É pois mais imperativo do que nunca pensar e atuar contracorrente à tendência globalista e totalitária em curso, que quase todos os políticos atuais, por razões que só a eles assistem, parecem aderir. Levantem-se as vozes da resistência, críticas da crise, promotoras de abertura à mudança e criadoras de verdadeira independência individual!
Michel Montoire
Lisboa, 29 de dezembro de 2024